quinta-feira, 21 de outubro de 2004

"As Farpas", Outubro (1888) - Parte II

"Na serra, entre o convento dos Capuchos e o castelo dos Mouros, o palácio da Pena, espera, insensível, que a licitação em hasta pública ou o acordo amigável entre os herdeiros de D. Fernando decida a quem aquele senhorio tem de pertencer.
A propriedade de Monserrate, tão célebre pelas festas principescos que no principio do século aí deu William Beckford, como pelo quási lúgubre encerro em que hoje a sequestra da convivência social o Sr. Frank Cook, Visconde de Monserrate, seu actual possuidor, vai-se alastrando cada vez mais, ameaçando absorver tudo, porque o Sr. Cook embirra de avistar das suas janelas uma copa de pomar, um muro de quinta, ou um telhado de casa, a que ele não possa mandar dar pelo seu arquitecto, pelo seu decorador ou pelo seu jardineiro, a linha e a cor mais adequada para pôr a paisagem circunstante em harmonia com os princípios da sua estética ou com os caprichos do seu temperamento.
Nos prados de luzerna da Penha-Longa continuam a pastar tranquilos os carneiros e as vacas de luxo, que dão a esta quinta, com os seus estábulos e com as suas oficinas rurais, o grande ar de uma granja inglesa.
Finalmente, na fonte da Sabuga vai correndo sempre, férrea e desnevada, a cristalina água da serra. Fabricam-se como antigamente as queijadas da Sapa, tão gratas ao paladar de Lorde Byron. Abunda o bom leite, a manteiga fresca, as ameixas, os pêssegos, os vinhos palhetes de Colares, as rosas de D. Maria e os amarantos de Bernardim Ribeiro. Na frescura das velhas matas, no doce murmúrio das águas correntes, na suavidade da luz coada pela verdura das alamedas, durante os lentos passeios solitários sobre o solo fofo de folhagem, por entre as moitas dos fetos e das hortênsias, uma vaga palpitação de saudade parece errar com o perfume da flor das madre-silvas e da seiva dos castanheiros, como se à prosaica vilegiatura dos nossos dias alguma coisa se mesclasse dos poéticos ócios da corte de D. João II e de D. Manuel, envolvendo na azulada neblina da montanha os vagos e difusos fantasmas brancos das infantas D. Maria e D. Beatriz, das suas damas e dos seus artistas, de Paula Vicente, de Luísa Sigeia, de Bernardim Ribeiro, de Gil Vicente, de Garcia de Resende, de Luis de Camões". (Cont.)

In "As Farpas" (Outubro, 1888), José Duarte Ramalho Ortigão

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2 Comments:

At 14:07, Anonymous Anónimo said...

Texto bonito.
Cheio de poésia,cor,e perfume!
Gosto muito!
Sintra a serra da lua!!
Felicitaçoes!
Christine

 
At 14:10, Anonymous Anónimo said...

Texto bonito.
Cheioe poesia,cor e perfume.
Gosto muito.
Sintra a serra da lua!!

Félicitaçoes!

 

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