quarta-feira, 29 de setembro de 2004

"Regresso à Cúpula da Pena" - Parte III

Este texto de José Rodrigues Miguéis é mais um exemplo de como Sintra e seus arredores influenciaram inúmeros grandes escritores. Muitos deles, nacionais e estrangeiros, deixaram-se enfeitiçar pelas paisagens idílicas que este pontinho do globo oferece! E como nunca é demais relembrá-los, vou continuar a publicar textos alusivos a esta magnífica Vila e seu mágico envolvente. Já sabem, quem quiser o texto na íntegra, pode sempre pedi-lo através de e-mail.

"Regresso à Cúpula da Pena" - Parte III

E aqui vou eu agora a caminho de Sintra, sem mais nem menos, só porque uma tropa fandanga se lembrou de atravessar o largo, à hora a que dantes havia um rápido, e eu ali sentado a remoer problemas na esplanada do Suisso! Olhando a paisagem dura do Cacém, ocorreu-me esta pergunta estúpida: «Se ainda haverá cisnes pretos no lago?»
Chegado a Sintra, desentorpeci as pernas andando até à vila. O que sempre me atraía ali eram sobretudo as verduras, as sombras, as fontes, a paisagem, a altitude. Postado agora na arcaria ogival do Palácio Real, olhei o alto da Pena, e quis ter asas para galgar os penhascos, roçar os cimos do arvoredo, ir poisar naquelas torres e ameias dignas do Walt Disney. Mas, com franqueza, nem asas, nem pernas. Vista cá de baixo, da vila, a Pena pareceu-me um caso de respeito, ninho de águias, rochedo mitológico, amontoado de ciclopes exasperados, de garras crispadas, a agatanhar o céu. Como é que eu pude outrora trepar aquilo a pé, depois da caminhada desde Lisboa, como cheguei a fazer? E o que é que me atraía agora lá acima, que memória, que enamorado pensamento, que secreto desejo, anseio de galgar o hiato do tempo, desgarradora saudade ou largueza de vistas? Porque era ali que a vontade me estava chamando.
Corri a tomar uma tipóia que envelhecia no largo, agarrada às pilecas, e mandei bater para a Pena. Não, nem Seteais, nem Capuchinhos, nem sequer a Cruz Alta: a Pena! Daí a pouco, perna cruzada, chapéu no regaço, assobio na boca, a alma à larga, a brisa fresca no suor da calva ― por entre o gemer das molas e o bufar das bestas gastas, eu trepava a serra das serras. Mandei parar nas fontes e bebi, repetindo os gestos consabidos de quem refaz um velho conhecimento ou pratica um ritual.

FIM

José Rodrigues Miguéis, in “Léah e outras Histórias”, excerto de Regresso à Cúpula da Pena (1959)

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